Todo homem é um ser dividido entre as tentações da barbárie e as imposições da civilização. A batalha ancestral é travada a cada dia em seu íntimo, quando hesita entre beber a água da jarra ou usar um copo, entre palitar os dentes à mesa ou passar um fio dental, no banheiro, entre olhar, afoito e babão, todos os corpos femininos que desfilam diante de seu nariz ou fixar os olhos no chão, no horizonte, no relógio, na torre de tevê, pensando calma, calma, não é para tanto, é apenas uma mulher, você é casado, você é educado, você não é uma besta incontrolável, refém dos mais baixos instintos. Ou é? É, também, por isso o conflito – e não há melhor exemplo de nossa triste e dilacerada condição do que a calça de moletom.

Convenhamos, meus caros: se não existissem mulheres no mundo, você não tinha chegado nem ao jeans, o que dizer do veludo cotelê, da camisa de botão, do terno e da gravata? Se não fosse por essa outra metade de nossa espécie, a metade perfumada, arrumada, a metade que tentamos agradar – de maneira muitas vezes atrapalhada, equivocada, burra, mas tentamos –, andaríamos por aí com os mesmos conjuntos de malha da oitava série, remendados nos joelhos e nos fundilhos com toscos pedaços de silver tape.

Seria um mundo triste, é verdade, mas confortável, e a busca pelo conforto está inscrita nas primeiras páginas do livro de nossa memória. A poltrona troncha e abaulada, o chinelo mulambento, o morninho espaçoso do moletom; todos eles nos remetem ao útero, às delícias da vida amniótica, sem gravidade nem botões, sem trabalho ou declarações do imposto de renda. Mas eis que somos expulsos do éden umbilical e, daí pra frente, haverá sempre uma mulher nos exigindo algum esforço, alguma abnegação, alguma melhoria. Nós vamos a elas iludidos, acreditando no possível encontro do eldorado e elas nos remetem ao mundo – vai trabalhar, vagabundo! –, ordenando que troquemos as poltronas, os chinelos, a calça de moletom, nos tornemos homens dignos, asseados, apresentáveis.

Ainda lembro, com certa melancolia, do dia em que vi meus colegas, no fim do ginásio, aderindo à calça jeans. Pensei: então é isso? Vocês abrirão mão do conforto e se curvarão aos ditames da elegância e do bom gosto, só para agradar às garotas? Ali, na arquibancada do colégio, durante o recreio, na mais nublada das manhãs, comendo um pão de queijo xoxo e bebendo uma Coca de máquina, eu soube que a guerra estava perdida. Que, no final do século XX, a partida já era disputada no campo das rivais, com seus juízes e bandeirinhas, diante de sua torcida, e que só nos restava ficar na retranca e aceitar seu ritmo de jogo.

Dali em diante, o moletom foi relegado à prisão domiciliar. Só na clausura do lar ainda temos coragem de vesti-lo. Depois do banho, antes de dormir, sem mais testemunhas do que nossas (contrariadas) esposas, reconfortamo-nos naquela peça de roupa amiga, felizes como um cão em seu velho tapete.

Não, não serei hipócrita. Não conclamarei as hostes masculinas a tirarmos o moletom do armário, a irmos à festa da cunhada, a restaurantes, cinemas e reuniões de calças amarelas, azuis, verdes e vermelhas. Sou um realista. Também quero ser aceito pela metade polida e cheirosa de nossa espécie. Gostaria apenas que nos lembrássemos, quando trajarmos essas mal-faladas peças do vestuário, que a malha que se esgarça em suas pernas traz nos fios, companheiro, a lembrança de antigas glórias. É como os caninos, que diminuem a cada geração, mas ainda carregam em suas bordas pontudas a história de nossas batalhas na savana. O moletom, meu irmão, é um símbolo da liberdade perdida – pois só o homem que já subiu uma escada de samba-canção e moletom pode dizer que já foi livre um dia.